Uma das coisas que me afastava de escrever livros era a noção que, antes de começar, eu deveria parar e fazer registros detalhados do que eu estava prestes a fazer. Um esboço, com todos os acontecimentos importantes e a ordem que eles se desenvolviam, descrições de todos os personagens e locais, registros histórico de tudo, quem sabe mapas… E isso tudo soava extremamente trabalhoso, e chato. A parte divertida de escrever é, pasme, escrever!
Então, quando decidi que era hora de começar a escrever, eu simplesmente sentei e escrevi. Escolhi um cenário urbano, algo familiar o suficiente, pensei em alguns personagens (entendendo o que eles eram, o que queria, como se sentiam) e, sem mais, comecei.
Depois fui descobrindo que isso não é ser irresponsável e amador, mas algo que muitos fazem: escrever sem um outline. George Martin chama isso de ser jardineiro: você planta as sementes da sua história e acompanha-as crescendo, podando-as, cuidando delas, mas sem saber exatamente o que vai sair. Pesquisando um pouco eu descobri que autores grandes, como o Ray Bradbury e o Stephen King escrevem desta forma (e se o STEPHEN KING escreve sem planejamento isso não é uma heresia). O Bradbury, inclusive, menciona que para ele a trama da história é como as pegadas que ficam na neve depois que você anda. Estão lá no final, visíveis, mas antes da caminhada não se sabe exatamente como vão ficar.
No começo achei que eu estava redescobrindo a roda: acreditava que aquele não era só o meu estilo particular, mas que era O estilo que todos deveriam seguir. Era o melhor jeito de escrever uma história honesta.
Mas com o tempo fui vendo que não tem nada a ver. Como o Kaio falou, todo mundo acaba tendo algum nível de planejamento. Não são dois extremos, planejar e não planejar: é todo um espectro, e os autores acabam ficando em algum ponto dele. Usando nós, do Ficcionados, como exemplo, seria algo mais ou menos assim:
Dito isso, estou nessa de não planejar há alguns anos, e nesse tempo percebi várias particularidades do método.
Por que não fazer um Outline
Nos artigos desta semana (e em vários futuros) mencionamos o termo Outline. Não há uma tradução exata, embora algumas palavras como esboço ou delineação possam ser adequadas ao sentido que se dá na língua inglesa. O Outline é um conjunto de anotações que são a essência da sua história, usualmente notas mais secas, sem descrições ou diálogos. Me arriscando um pouco, seria algo como:
João chega em casa e encontra a carta misteriosa. A carta diz para ele ir ao cais. Tom: cansaço de João, metido na vida urbana solitária. Mencionar que ele não tem ninguém.
João vai ao cais e encontra seu pai, que conta sobre os poderes de sua família. João lembra-se de todas as coisas misteriosas que aconteceram na sua infância. Dar a ideia de quanta falta o pai fez em João.
Carlos observa o encontro de João com o pai, e prepara-se para matá-los. Apresentação do personagem do Carlos. Tom: a frieza do assassino. Definir as diferenças na voz narrativa do Carlos.
Combate. Ponto de vista do Carlos, ainda. O Pai de João é jogado na água e desaparece. João fica irado, e ativa seus poderes misteriosos.
Carlos desperta, sem entender o que aconteceu. Ele está dentro da cabeça de João. Descrever ele preso dentro da mente de outra pessoa.
Carlos sai da mente de João para salvar a vida do amigo. Discussão interna de Carlos, percebendo seus erros. João perdoa Carlos. Eles saem de Marte.
É quase um roteiro, mas mais simplificado.
Entendendo isso, escrever sem fazer algum tipo de outline pode parecer loucura, mas tem algumas vantagens.
A primeira, que eu já citei, é que você não precisa fazer nenhum trabalho extenso antes de começar. Você define onde a história começa e quem está lá e voilá, tudo certo.
E isso leva à segunda coisa positiva: você não sabe o que vai acontecer. O autor se torna uma espécie de observador, lendo a história e pensando “não acredito que ele vai fazer isso”. Acontece! Um dia você senta para escrever, revisando os últimos acontecimentos, e entra na cabeça do seu personagem, tentando pensar como ele… E algo te surpreende. É incrível! Na minha experiência, o fator diversão é altíssimo durante a primeira escrita. Escrever se torna tão prazeroso quanto ler, ou até mais.
A terceira vantagem é que a história fica natural. Ela segue o caminho que tem que seguir, independente de arcos dramáticos previamente decididos, de acontecimentos chave para a história se desenrolar. Não há aquele tom de irrealidade que muitas vezes quebra uma narrativa. É mais difícil algum ponto ficar mais forçado.
Vago demais? Ok, vamos expandir um pouco:
Quando Escrever com um Outline Torna-se Irreal
Você já se viu assistindo a um filme ou lendo um livro e chegou num ponto onde algo quebrou sua imersão, algum acontecimento foi muito irreal, conveniente ou forçado?
Creio que muitas vezes que isso advém de mau uso de um outline.
Veja bem, o outline não detalha todos os acontecimentos da história. Os detalhes vêm depois, no meio da escrita, na elaboração completa do roteiro, etc. E esses detalhes têm o potencial de mudar o rumo da história. Quando isso ocorre e o planejamento inicial não é modificado, a história pode tornar-se forçada.
Pense assim: imagine que você escreveu um outline já com um final na cabeça. Para esse final funcionar, o personagem A precisa assassinar alguém. Sem o assassinato, o final perde a força, e não faz sentido.
Então você começa a escrever, e o personagem A ganha vida, vai adquirindo detalhes e personalidade. Você pode até ter planejado os aspectos gerais dele, mas muitas coisas vão vir com a escrita, dos pequenos cacoetes à opiniões diversas. E, quando chega no ponto do assassinato, você percebe que o personagem que você escreveu até ali não faria aquilo. Não combina com ele.
Nesse ponto algumas coisas já deram errado durante a escrita. Talvez o personagem devesse ter sido mais bem definido previamente, ou esse esboço inicial da sua personalidade deveria ter sido mais bem utilizado. De uma forma ou outra, essa situação não é tão difícil de acontecer. Descrever um personagem sem tê-lo escrito antes é como definir uma pessoa pelas fotos que você vê dela. Se a história é longa, é difícil manter-se pensando muito no final o tempo todo.
Enfim, essa situação aconteceu. O personagem A, como foi descrito, não é um assassino. Seria forçado fazê-lo matar outra pessoa só pro seu final incrível acontecer.
Há algumas opções:
Você pode reescrever todo o personagem, e, consequentemente, boa parte do seu livro, desde o começo, para que quando aquele ponto aconteça ele faça mais sentido.
Você pode tirar o assassinato do seu outline, e replanejar todo o livro (possivelmente arruinando o final incrível que te motivou a escrever a história).
Ou você pode ignorar tudo isso, fazer o personagem assassinar o outro e deixar por isso mesmo.
Dentre essas opções, não parece tão improvável assim alguém acabar escolhendo a terceira, não é mesmo? Reescrever o livro inteiro é um enorme trabalho, e o final pode ser a coisa mais interessante de toda a obra, não valeria a pena tirá-lo.
Então, essa terceira opção muitas vezes ocorre, e aí que jaz o problema. O acontecimento é forçado para que o outline seja seguido. A imersão se esvai.
Se você já assistiu Gravidade (ou não quer assistir), abre a aba de spoilers para um exemplo prático de um ponto onde eu acho que isso aconteceu:
O filme começa muito bem, com uma fidelidade legal à física do espaço, que me pegou desde o início. As deslizadas que o filme dá (ir voando até a estação espacial internacional a partir do hubble, sério?), pelo menos pra mim, passaram fácil pelo filtro da suspensão de descrença, até a cena da morte do personagem do George Clooney. Assistindo o filme, ficou muito claro: o personagem precisava morrer para que o resto da história acontecesse. Era uma necessidade da trama, talvez descrita só como “Clooney morre: precisa ser dramático” no outline inicial. Então eles foram colocando os detalhes de como as coisas aconteciam, e, na hora da morte, as circunstâncias não eram as mais apropriadas para uma coisa dramática, do jeito planejado. E então, o que eles fizeram? Quebraram todas as leis de gravidade e fizeram uma cena que me tirou completamente do filme (e aposto que muitos outros mais). Talvez aqui o problema não seja só o outline, mas também um pouco de preguiça dos roteiristas, mas a presença dessa trama previamente definida fez seu papel.
Uma história sem outline não tem esses problemas. Se o personagem morre é porque as circunstâncias levaram à morte dele, não por causa de necessidades dramáticas. Há uma preferência para o realismo, a procura por uma história que faça sentido, que seja lógica acima de tudo, não só a extensão de um arquivo de planejamento de mil palavras.
Por que isso pode dar muito errado
Isso tudo pode parecer lindo, mas gera uma centena de problemas depois. O primeiro é que uma história realista muitas vezes simplesmente não é interessante. Você acaba numa narrativa, não necessariamente numa história. E você pode fazer da sua história o que você quiser, mas se você quer que as pessoas leiam parece uma ideia razoavelmente importante fazer ela ser interessante. Acontecimentos mundanos não são dramáticos o suficiente.
E outra, a “história ganhar vida” pode parecer lindo e maravilhoso, mas isso também significa que ela pode tornar-se demasiadamente longa, prolixa, perder o propósito inicial e virar uma divagação colossal sobre os personagens fazendo coisas que já perderam a importância há muito.
Em termos mais práticos, escrever sem outline é muito legal enquanto você está fazendo o primeiro rascunho, mas depois você precisa revisar. E revisar. E revisar. E repetir isso. A cada releitura surgem mil pontos que não foram bem colocados, inconsistências, e problemas gerais na estrutura… Um livro sem outline, na minha experiência, só fica “legível” depois de duas ou três revisões. Antes disso ele é um apanhado de cenas que não conversam bem entre elas, de trechos inconsistentes com notas do tipo “depois voltar lá atrás e reescrever a outra parte pra fazer sentido, não vou fazer isso agora porque senão esqueço o que vai acontecer nesta cena aqui”. E revisar, como eu descobri, é muito, muito menos empolgante do que escrever.
A revisão não é só uma releitura, correção de erros de digitação e gramática, mas sim uma reescrita pesada, uma reorganização e, mais importante, uma procura. Procura do que as coisas deveriam significar, qual o propósito das cenas, da história, o que deu certo o que não… É o ponto onde se aplica a técnica, se pensa em estrutura narrativa e em toda a teoria que se estuda. O primeiro rascunho, para muitos escritores que escrevem como eu, acaba sendo mais um outline do que o livro propriamente dito, as ideias importantes ali, para serem lapidadas. Como diz o Stephen King, “escreva bêbado, edite sóbrio”. Com essa frase na mente, às vezes vejo-me sussurrando, enquanto reviso: “Eu não sei o que eu bebi pra sair isso aqui”.
Fala-se que, quando se escreve com um Outline, a parte mais difícil é o meio. O início e o final usualmente são bem planejados, e até tornam-se a parte mais empolgante do livro, enquanto o meio é toda aquela construção meticulosa necessária para que a história seja completa.
Escrevendo sem outline a situação se inverte, e muitas vezes de uma forma negativa. No começo o próprio escritor está entendendo sobre o que é a história, e no final ele tem esse monte de eventos e precisa criar um desfecho satisfatório. Aquele final incrível, o plot twist final que faz tudo valer a pena, é muitíssimo mais difícil de vir sem planejamento.
Certo, eu falei muito sobre as vantagens e desvantagens de se escrever assim… Mas, afinal, como se escreve sem planejamento?
Como escrever sem Outline
Não faça um Outline! É só escrever! Não é lindo?
Ok, fala sério
Certo, certo, não é tão simples assim.
Uma coisa importante é definir, de início, que tipo de história você quer contar. Por que as pessoas vão ler sua história? Quais elementos são necessários para que isso aconteça?
Se você quer escrever um mistério policial, pode ser uma boa ideia começar com um assassinato. Se é uma comédia, é importante mostrar isso logo no começo.
Um tipo de história que funciona especialmente bem para escrever sem planejamento é o tipo “jogue os personagens num conflito e veja o que acontece”. Crie as pessoas e coloque-as em uma situação inusitada, interessante, o tipo de coisa que te faz imaginar como você próprio reagiria. Coloque as pessoas nessa situação, pense como elas, e decida você mesmo como serão essas reações.
A partir daí é uma sequência perfeitamente lógica. Problema, reação. Se a reação resolve o problema, a história acaba. Mas provavelmente não resolverá de início, e só gerará mais conflitos.
Conheça bem os seus personagens, coloque-se na cabeça deles. Não dá para prever o que todos farão até o final da história, isso depende muito das circunstâncias. Às vezes um detalhe que você narra, num surto de criatividade vindo sabe-se lá de onde, acaba moldando todos os eventos futuros. É comum ter uma ideia geral de onde a sua história está indo, mas essa ideia é bastante maleável.
Esse método é bastante simples, lógico e intuitivo, tanto que eu, universitário quase sem tempo mas com uma ânsia gigante para praticar a escrita, consegui usá-lo para escrever constantemente sem travar em pontos críticos da trama ou “perder” tempo planejando.
Lembra do exemplo do começo, do João e a carta do pai? Imagine que você só tinha essa cena inicial, e a história se desenrolou sem planejamento. Lendo depois, durante a revisão, talvez a estrutura se tornasse algo parecido com isso:
João chega em casa cansado, frustrado com a vida e a solidão dele. Discussão sobre o miojo frio ser uma representação certeira da vida dele. Ele joga a bolsa no chão, e sem querer quebra o celular que ele esqueceu dentro. Ele vê a carta misteriosa, mas a prioridade passa a ser o celular que ele acidentalmente quebrou.
Carlos espera João se encontrar com o pai, mas João nunca aparece. Carlos fica nervoso: se ele não matar os dois, sua reputação na guilda dos assassinos seria manchada. O pai de João também está inquieto, mas aguarda.
João está aguardando na loja para consertarem seu celular, e fica remexendo a bolsa, cheio de remorso da própria irresponsabilidade. A sorte dele é que havia uma loja de celulares aberta 24h por dia, com uma garota animada pronta para atende-lo. Ele vê os papéis que tinha nos bolsos, e acha a carta. Ele lê, e dispara para o cais.
Carlos cansa de esperar, e age para matar o pai de João. Mas o pai nota, e eles lutam no cais. Nesse ponto João chega, vendo Carlos matar o pai, e não percebe que foi seguido. A garota da loja de celulares veio atrás dele.
O presidente ri, João e Carlos amarrados, e prepara-se para passar os códigos dos mísseis por telefone para seu general. Entretanto, por causa da luta na piscina, o celular dele está danificado e não funciona. Ele rouba o celular de João, que, por causa do conserto ruim da garota da loja, demora demais para funcionar. Neste ponto, ela rastreia o local da chamada e descobre o paradeiro de João, sua paixão desenvolvida nessas últimas 300 cenas.
E assim vai, até o livro ter setecentas páginas e serem três da manhã e você tem prova no dia seguinte mas não dava pra parar naquela última cena, você tinha que continuar escrevendo pra saber o que acontecia.
De qualquer forma, aí está a diferença. Um ponto interessante é que, mesmo com o desfecho o boa parte da história totalmente diferente, os dois exemplos continuaram com temas similares: os dois opostos que superam as diferenças e se tornam amigos no final.
Essa estrutura do exemplo é relativamente comum entre histórias: ação e reação. Algo acontece, os personagens reagem, as reações causam algo... E o ciclo se repete. Mais sobre esse tipo de estrutura em um artigo futuro.
Então, ao final, o que eu devo usar?
Escrever com ou sem Outline é uma escolha do autor. Pense o que você quer com os seus livros. Você quer se divertir escrevendo? Quer fazer um final incrível que exploda cabeças? Quer desenvolver uma história aos poucos, conhecendo os seus personagens enquanto escreve?
Não há certo e errado; há o que funciona para você. Comece escrevendo de uma forma que seja natural, que você consiga fazer sem ficar ansioso ou produzir pouco. Experimente coisas diferentes, decida o que você gosta. Ao final, como eu mencionei no começo, é um espectro: mesmo fazendo um Outline, você está descobrindo-o enquanto escreve ele.
É importante saber que isso existe, mas não para seguir um ou outro método à risca, mas sim para ter mais ferramentas no seu repertório, e poder experimentar novas maneiras de se escrever. Relaxe, não fique muito ansioso com isso.
Eu escrevi este artigo de uma vez e depois passei duas vezes o tempo da escrita revisando e reescrevendo-o pra que fizesse sentido. E você, Ficcionado, qual o jeito que funciona melhor pra você?