Criar personagens é algo delicado. Mais ainda é saber o quanto investir nisso.
De vez em quando lidamos com personagens que não são fiéis aos seus atos passados. Ou, às vezes, colocamos uma personagem que deveria ser forte e marcante, mas acaba sendo indiferente para o leitor.
Daí entram as análises.
Não que as personagens precisem ser a alma de sua história. Como dissemos aqui, algumas histórias funcionam muito bem com personagens pouco marcantes, dirigindo o foco do leitor a outros elementos narrativos.
Mas se você quiser personagens que permaneçam na mente dos leitores muito após seu livro ser posto de lado, alguns pontos devem ser pensados.
Uma maneira de entregar às suas personagens um pouco mais de personalidade e realismo. Uma maneira de mantê-las congruentes, trilhando o caminho que deveriam trilhar.
Estou falando de objetivos.
Objetivos Externos
São os desejos conscientes da personagem, aquilo que ela quer e que busca ativamente.
É provável que você já tenha isso claro para o seu protagonista, e não duvido que sejam esses desejos que empurrem a sua história para frente.
O protagonista quer derrotar o tirano que controla a galáxia inteira? Quer encontrar aquele artefato perdido? Quer descobrir quem é o verdadeiro assassino?
Como você pode ver, os objetivos externos acabam se relacionando com o gênero da história, orbitando os valores dominantes desse gênero.
Se a história for ação (vida/morte), é provável que o protagonista queira derrotar o vilão.
Se for romance (amor/ódio), ele quer perseguir ou fugir de uma relação amorosa.
Se for crime (justiça/injustiça), ele quer solucionar o mistério.
Se for terror (vida/danação), ele quer escapar da situação aterrorizante.
Não que isso seja uma regra, mas você precisa estar ciente que as promessas feitas ao leitor começam já na definição do gênero. Um romance sem uma relação amorosa é… estranho, não?
Tudo bem, como eu já disse, acredito que seu protagonista já tenha um objetivo externo bem definido. Afinal, dificilmente se pensa em uma história sem isso.
Mas e quanto às outras personagens? Será que o antagonista tem um objetivo externo tão sólido quanto? E os coadjuvantes, o que querem? Estão apenas vivendo por aí, esperando para ajudar ou atrapalhar o protagonista? Existem apenas para isso?
Muitas vezes, ainda mais quando o roteiro não maturou o suficiente, aparecem personagens secundárias que não parecem ter uma vida própria, que existem só para cumprir um papel. E só de você parar para definir o que elas querem da vida, fazendo com que isso respingue em suas ações, já cria todo um novo nível de profundidade.
Claro que depende da relevância das personagens. O leitor não precisa saber os desejos íntimos daquele carteiro que só aparece uma vez e nunca mais.
E também os desejos das personagens secundárias não precisam ficar claros na primeira interação com elas. Aí vai de como você preferir trabalhar com a exposição.
Mas falando de profundidade, tem ainda outra gama de objetivos, às vezes negligenciados, que revolucionam o subtexto...
Objetivos Internos
São os desejos geralmente inconscientes da personagem, aquilo que ela precisa.
Muitas vezes estão ligados ao objetivo externo: se a sua personagem é alguém que quer derrotar o vilão poderoso, mas é uma grande covarde, ela precisa superar o medo.
Porém, há situações em que o que ela quer e o que precisa estão em conflito.
Vamos supor um detetive famoso que só conquistou o prestígio porque teve problemas familiares que o fez focar no trabalho. Ele terminou com a esposa e perdeu a guarda da filha. Agora foi convocado para solucionar o crime mais enigmático da história; isso é algo que ele quer, pois o trabalho excessivo o faz esquecer da família. Mas o que ele precisa é fazer as pazes com ela. Nesse caso, os objetivos caminham em direções opostas.
Você percebe a diferença entre aquele clássico detetive inteligente sem nenhuma vida além do trabalho e o detetive do exemplo acima? Percebe a profundidade que o último ganha?
É a busca pelo objetivo interno, consciente ou não, que transforma a personagem. E essa transformação pode vir sob a forma de amadurecimento, superação de um defeito, inversão de valores ou até a conquista/perda de notoriedade.
Além disso, o mesmo comentário feito para os objetivos externos vale para cá: é interessante pensar nas necessidades das personagens secundárias. Sim, com sua devida proporção.
Alguns Exemplos
Vamos começar por “Harry Potter”. O que ele quer e o que ele precisa? Bem, ele quer derrotar Voldemort, só que para isso ele precisa aprender magia. Claro que ao longo dos livros ele possui outros objetivos externos e internos, mas esses dois sustentam a visão macro da história. E é justamente o objetivo interno — aprender a magia, descobrir o mundo bruxo e o seu papel nele — o responsável pela transformação de Harry.
Em “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, Arthur Dent quer a Terra de volta e, após uma série de eventos improváveis, acaba indo em busca da resposta para a Vida, o Universo e Tudo Mais. Só que o que ele realmente precisa é encontrar o seu lugar no universo.
Jack Torrance, de “O Iluminado”, tem dois objetivos externos: cuidar do hotel Overlook durante o inverno e terminar de escrever sua peça. Contudo, precisa controlar o alcoolismo e o temperamento explosivo.
Em “A Guerra do Velho”, John Perry quer dar um novo sentido à sua vida e parte para combater alienígenas que ameaçam as colônias humanas por todo o universo. Enquanto isso, o que ele precisa é superar a morte da esposa.
Por último, um exemplo um pouco mais profundo: Harry Haller, em “O Lobo da Estepe”, é um homem dividido entre seu lado social e seu lado solitário. Um deles quer se tornar um Imortal, um ícone da cultura de sua época; o outro busca o isolamento completo. Dividido entre dois objetivos externos e conflitantes, ele se torna alguém extremamente infeliz e deslocado. Mas o que ele precisa é encontrar uma maneira de viver na sociedade, que tanto despreza, sem ser afetado por ela.
Notas Finais
Em geral, é a busca pelo objetivo externo que dita o ritmo da história. Porém são somente os objetivos internos que podem mudar a personagem, que mostram ao leitor a transformação que a jornada causou. Acho que essa transformação é o mais importante de qualquer história. É ela que cria o vínculo entre leitor e personagem. É com ela que nos identificamos. É com ela que aprendemos.
Dificilmente você e eu seremos os únicos capazes de salvar o mundo das mãos de um poderoso mago encantador de dragões. Mas é bem provável que nós dois tenhamos algo a aprender com o cavaleiro mágico que descobriu o verdadeiro significado de humildade.
E aí, você sabe o que suas personagens querem e precisam?