Conversamos com o Diego Schutt sobre a sua experiência com cursos de escrita, atendidos e ministrados, sobre as inseguranças do escritor iniciante e sobre o mercado nacional.
O papo foi longo e rendeu excelentes dicas!
Sobre
O Diego já trabalhou com publicidade, fez vários cursos de redação criativa e storytelling ao redor do mundo e hoje mantém o Ficção em Tópicos, um dos maiores portais sobre escrita de ficção em língua portuguesa. Através do site, ele oferece serviços de consultoria e o curso Jardineiro de Ideias, que ensina escritores a plantar ideias e colher histórias.
Livros Preferidos
Livro de ficção — “Sonhos de Einstein”, de Alan Leickman
Diego: O livro é estruturado ao redor de 30 sonhos de Albert Einstein. Em cada um, o tempo funciona de um jeito diferente. Em um dos sonhos, o tempo transcorre todo em um único dia: o nascimento, a vida e a morte. Em outro sonho, o tempo passa de trás para frente. Em outro, o tempo é circular e os acontecimentos se repetem em um ciclo infinito.
O que eu gosto nesse livro é a forma como o autor explora a relatividade do tempo em cada sonho e nos dá pistas de como seria viver nesses mundos. Foi um livro que me marcou justamente por mostrar o potencial imaginativo da escrita de ficção. Ele é bem curtinho, bem rápido de ler e extremamente inspirador.
Livro de não-ficção — “Story”, de Robert McKee
Diego: Sou quase obrigado a indicar esse livro porque foi ele que me motivou a criar o Ficção em Tópicos. Foi uma leitura que me deu uma visão mais profunda sobre o que são e para que servem histórias. É um livro bem conhecido e recomendado por muitas pessoas. Ele é mais direcionado para roteiristas, para quem quer fazer cinema. Mas o Mckee também traz muitos conceitos que são fundamentais e que se aplicam não só à escrita de roteiro, mas também à narrativas em prosa e à dramaturgia.
Perguntas
Diego: Difícil escolher um único assunto. Talvez seja mais pertinente escolher um dos cursos que fiz. Não quero ser repetitivo, mas acredito que foi o seminário do Robert Mckee, que se chama “Story”. Apesar do conteúdo ser basicamente o mesmo do livro, a experiência do seminário foi muito marcante, muito rica. Isso foi lá atrás, quando eu recém tinha criado Ficção em Tópicos.
Não gosto de pensar nessa questão de uma forma tão definitiva porque pode passar a ideia de que “o seminário tal revelou todos os segredos da escrita de ficção” ou “aquele curso me deu uma fórmula e, a partir de então, eu comecei a escrever muito melhor”, e não existe isso.
O seminário do Mckee foi uma experiência marcante porque me deu uma visão mais global do processo de criação de uma história. Antes, eu olhava somente para o específico para aperfeiçoar minha escrita: a escolha de palavras, os detalhes sobre os personagens, a originalidade do conflito, enfim, minha atenção estava muito limitada para os detalhes da história que aparecem na página. Minha visão mudou quando comecei a olhar para histórias de uma forma mais macro, quando aprendi a dar vários passos para trás e enxergar a progressão da narrativa como um todo. Comecei a olhar para estrutura, para o efeito cumulativo dos acontecimentos, para a sucessão de eventos do enredo que culmina no clímax. Acho que foi quando comecei a prestar mais atenção nisso que passei a olhar para escrita de ficção de uma forma diferente.
Tendo dito isso, mês passado eu fui num outro seminário do Mckee, sobre gêneros de cinema. Ele faz um dia sobre comédia, um dia sobre suspense, um dia sobre história de amor e um dia sobre séries de TV. Esse também foi um seminário bem interessante porque, até agora, eu pensei muito a respeito da criação de universos de ficção, de uma maneira geral, e sobre os ingredientes mais fundamentais de um história: personagens, conflito, enredo, cenários, diálogo e tema. Nesse seminário sobre gêneros, a gente mergulhou muito mais profundamente nesses tipos de histórias que têm suas próprias convenções, suas próprias formas de desenvolver os personagens e de trabalhar o enredo.
Além disso, as séries de TV merecem atenção especial porque se no passado a gente podia dizer “séries de TV são tudo bobagem, passatempos superficiais…”, hoje já não é o caso. Temos séries com uma densidade de conteúdo e com uma complexidade temática e de construção de personagens que é impressionante. E o que o Mckee trabalha nesse dia sobre séries é o desafio para o escritor de criar personagens que, por temporadas a fio, continuem interessando a gente, despertando nossa imaginação para seguir acompanhando a história. Pare para pensar: qual o nível de complexidade que um personagem precisa ter para sustentar cinco temporadas?
Então, enquanto o primeiro seminário do Mckee me deu uma visão geral sobre a estrutura de todas as histórias, o segundo me deu uma visão mais específica, sobre as particularidades, convenções e desafios de cada gênero.
Diego: Eu não acredito que exista fórmula do sucesso, uma técnica ideal para escrever. Não acredito em cursos que dizem “venha aqui que eu tenho o método que vai te fazer escrever do jeito certo…”. Eu gostaria muito que existisse essa técnica ideal e, inclusive, eu fiz tantos cursos justamente porque sempre pensava “esse agora vai ser o curso que vai mudar tudo e quando eu terminar, pronto, não preciso fazer mais nenhum”. Cada curso abriu mais minha mente para enxergar o quão complexo é o processo de transformar ideias em histórias e como existem diferentes formas de criar.
Por isso mesmo, um dos cursos que eu ofereço pelo Ficção em Tópicos se chama Jardineiro de Ideias, porque ideias são apenas sementes de histórias que precisam ser plantadas na página em branco e regadas com revisões e edições para que, eventualmente deem frutos que outras pessoas possam saborear na leitura.
No início do curso, algumas pessoas ficam muito preocupadas. Publicam o texto que escreveram para o primeiro exercício e dizem “não sei se fiz certo”. Existe uma preocupação excessiva em “fazer certo”, como se tivesse um jeito certo de escrever, um jeito certo de criar histórias. O que eu quero criar para essas pessoas durante o curso é um espaço onde elas se sintam à vontade para compartilhar suas ideias, mesmo que elas ainda não estejam bem desenvolvidas, mesmo que elas não tenham gostado do que produziram. Eu digo “publica lá e vamos conversar: O que você gosta nessa ideia? O que você não gosta nesse texto que escreveu? Que técnicas poderiam ajudar você a refinar sua ideia e expressar o que você gosta nela de uma forma mais impactante?” Minha luta durante o curso é eliminar a ansiedade das pessoas para tentar “fazer certo” e inspirá-las a se entusiasmarem com a simples possiblidade de experimentação.
O Jardineiro de ideias é um espaço para a gente conversar sobre essas inseguranças que vêm a tona antes, durante e depois de escrever, e eu acho que conversar sobre isso é tão importante quanto falar de técnicas. Não acho que existe aprendizado onde a técnica reina como a coisa mais importante dentro de um curso. Acredito que a prática direcionada e acompanhada de um diálogo sobre as intenções do escritor são exercícios muito mais importantes porque o grande aprendizado é um entendimento do impacto que cada escolha na forma de narrar tem na experiência de leitura. Esse entendimento tem muito mais impacto na qualidade final de um texto do que qualquer técnica que o escritor tente aplicar artificialmente para criar sua história.
Eu sempre oriento quem faz o curso: você primeiro escreve, deixa a ideia vir como quiser, e depois você pode usar a técnica para ganhar perspectiva, para identificar o que não está funcionando. A técnica é uma ferramenta, não um ponto de partida, e é isso o que muita gente confunde e o que alguns cursos vendem. Eu acho um desserviço para quem quer aperfeiçoar sua escrita.
Diego: O McKee lançou também um outro livro chamado “Dialogue”, ainda sem tradução para o Português, mais focado na escrita de diálogos. É um livro muito rico que ajuda a identificar porque gostamos tanto de certos diálogos e porque achamos outros clichês, porque uma cena funciona ou porque não funciona. O grande aprendizado que esse livro traz é sobre a diferença entre texto e subtexto. Texto são as informações que o escritor compartilha com o leitor, são as palavras que aparecem impressas na página. Subtexto é o que tá sendo dito nas entrelinhas, aquilo que o escritor e os personagens não dizem, mas que que o texto sugere, deixa subentendido. Nesse livro, o Mckee reforça a importância de saber separar que informações somente o escritor deve conhecer sobre seus personagens e seu universo de ficção, e que informações devem ser repassadas para o leitor.
Sempre que tenho uma ideia e me encanto demais com os personagens e com o universo ficcional, minha tendência é querer compartilhar com o leitor todos os detalhes que imaginei sobre a história. Muitos escritores com quem trabalhei também fazem isso. O resultado é quase como se você estivesse mostrando o making off de um filme enquanto a pessoa está assistindo. Isso tira o encantamento, tira a pessoa da história e relembra ela que aquilo ali não é de verdade, que existe uma pessoa criando aquela ilusão.
Esse é o grande ponto que o “Dialogue” faz e, por isso, eu recomendo muito a leitura. Acho que é um daqueles livros que acabam virando referência, que você lê do início ao fim e depois volta para consultar inúmeras vezes. E isso foi o que aconteceu com o primeiro livro dele, o Story. Eu gosto muito do Robert Mckee porque ele olha para escrita a partir da perspectiva de como o ser humano funciona, como nossas mentes e emoções funcionam, como nós reagimos a certos estímulos. Entender isso te dá um poder narrativo muito maior do que o simples uso de técnicas.
Um outro livro que recomendo é o “The Anatomy of Story”, do John Truby, mas também não tem em português, eu acho. O que eu não gosto nesse livro é que ele tem um tom muito mais de receita do que o do McKee. O que eu gosto é que ele traz vários conceitos que conversam com os conceitos do Mckee, mas ele traz isso de uma perspectiva um pouco diferente, então acho que é um bom complemento.
O Mckee fica muito no macro, naquela visão mais geral da história. O John Truby é mais específico, talvez até específico demais, o que acaba parecendo receita de bolo.
Diego: Acho que é importante começar tentando entender sua motivação para escrever. Tem aquele escritor que quer escrever para ficar rico e publicar. Esse é um perfil muito específico e muito diferente daquele escritor que nem consegue explicar porque escreve, mas que sente que precisa escrever: é uma válvula de escape, de organizar os pensamentos, de se acalmar, de se conhecer, de pensar sobre sua vida.
Que tipo de resultado você espera alcançar escrevendo? O que é sucesso para você? Sucesso é escrever textos que você gosta ou sucesso é escrever textos que outros escritores gostem? Sucesso é ser publicado por uma editora pequena, por uma editora grande e conhecida, ou ainda, ser publicado várias vezes por uma editora grande e conhecida? Ou sucesso é ter o reconhecimento de críticos literários?
Outro tópico importante é inspiração. Ser escritor é sentar a bunda na cadeira e trabalhar. E, às vezes, você não vai estar a fim de trabalhar e, ainda assim, se quer se tornar um profissional da escrita, vai precisar desenvolver uma certa disciplina.
Eu recomendo para quem quer ser escritor que, se possível, escreva todos os dias. Não é viável para todo mundo. Eu não consigo escrever todos os dias. Tem meses que sim, mas tem meses que não e tudo bem. Mas acho que a intenção, o comprometimento de tentar escrever todos os dias é importante para desmistificar essa ideia de que só vale a pena escrever quando você estiver inspirado, de que você precisa estar em um certo estado de espírito.
Na minha experiência, quando começo uma sessão de escrita pensando “Nossa, que fantástico! Está fluindo muito bem, estou inspirado”, no dia seguinte eu leio o resultado e acho uma porcaria. Isso acontece porque o foco daquela sessão de escrita estava muito mais na minha experiência, no prazer de me sentir como um escritor, do que na criação de uma experiência de leitura para outras pessoas.
Muitas vezes, comecei uma sessão de escrita pensando “Não estou com a menor vontade, mas vou escrever por apenas 25 minutos”. Essa despretensão em relação aos resultados e ao processo de criação me permitiu escrever textos muito mais interessantes do que os que escrevi nas sessões em que pensei “nossa, estou super inspirado”.
Acho importante a gente ter essas sessões inspiradas porque muito do prazer da escrita vem daí. Precisamos disso para compensar as outras sessões que não vão ser assim, que vão ser trabalhosas e frustrantes. O importante é lembrar que as sessões inspiradas são focadas na experiência do escritor.
As sessões focadas na experiência do leitor são geralmente muito penosas, se aproximam muito mais da nossa definição da palavra trabalho, que cansa e deixa você esgotado depois que termina. O escritor precisa encontrar prazer nesse processo que é dolorido e difícil. É um tipo de prazer diferente daquele de escrever inspirado. É o prazer de você enxergar o resultado do seu esforço, linha por linha, parágrafo por parágrafo, de ver a história ganhando corpo e expressando suas ideias com força e intensidade.
Diego: O medo das pessoas de mostrar um texto por acharem que ele pode estar “errado” ou ruim. É engraçado como muitas pessoas começam o curso com essa postura de querer impressionar, tanto eu quanto os colegas de turma. Parece que elas não tão ali para aprender, mas para mostrar como elas já escrevem bem. Então se não ficou bom, elas dizem “prefiro não mostrar”.
Não é à toa que eu coloquei lá no topo da página principal do Ficção em Tópicos um dos aprendizados que considero mais importantes: escreva para expressar, não para impressionar. No momento em que você consegue se desapegar da ideia de escrever para os outros acharem que você é inteligente, para pensarem “nossa, que sacada ou como ele domina bem o português ou que sensibilidade essa pessoa tem para falar sobre essa temática…” , no momento em que você para de escrever para receber aplausos e começa a escrever para expressar o que no mundo e nas pessoas chama sua atenção e desperta sua imaginação, eu acho que você passa a olhar para escrita de uma forma diferente.
Diego: Uma das maneiras de aperfeiçoar seu estilo é estudando o estilo de outros escritores. Para fazer isso, você pega o livro de um escritor que você gosta e relê ele inteiro, mas não como leitor, não é aquela leitura que você vai se deixando envolver pelo texto. É uma leitura com um olhar mais clínico, tentando identificar o que o escritor está tentando expressar naquela cena, página, capítulo. E você tem que fazer isso também tentando entender o que não está na página, mas você está identificando nas entrelinhas. É importante tentar entender essa relação entre texto e subtexto e considerar porque o escritor deixou certas informações e ideias subentendidas.
É importante também entender as escolhas estilísticas do escritor. Por que ele escreveu na primeira pessoa e não na terceira? O que mudaria se ele tivesse escrito o texto na terceira pessoa? Como isso mudaria a atmosfera da história e a nossa experiência como leitores? Por que ele usou essa palavra ou essa metáfora ou essa expressão? Por que ele passou um capítulo inteiro desenvolvendo só um personagem? Então, estudar o estilo de um escritor é se fazer essas perguntas sobre as escolhas relacionadas aos modos de narração.
Vale ressaltar que esse exercício é para você refletir sobre as engrenagens que fazem uma história funcionar, não para tentar decodificar o processo de criação do escritor. Você nunca vai adivinhar como um escritor criou uma história simplesmente fazendo engenharia reversa do texto. Mas esse exercício de desconstruir uma narrativa vai ajudar você a entender a importância de cada escolha que faz como escritor. Você vai percebendo que cada escolha, por menor que seja, pode abrir um leque de possibilidades para você desenvolver a história de diferentes maneiras.
Além de ganhar consciência sobre as escolhas estilísticas de escritores que você gosta, você também pode usar esse exercício para analisar textos que você não gosta e tentar entender o que, exatamente, o incomoda nessas narrativas. Articular o que você gosta e o que não gosta em certas histórias vai lhe dar pistas sobre o estilo de texto que você quer escrever. Uma vez que você identifica isso, você pode se dedicar a leitura de histórias semelhantes, com o mesmo estilo, para que você enriqueça seu repertório e comece a internalizar esses modelos de qualidade que vão servir de referência para você desenvolver seu próprio estilo.
Diego: Eu tenho muita ressalva em falar de mercado porque o meu interesse está muito mais focado, nesse momento, no processo de criação do escritor do que em questões mais mercadológicas, relacionadas à vendas e publicação. Tendo dito isso, eu tenho algumas opiniões que vou jogar aqui para vocês.
Uma das coisas que eu enxergo no Brasil é que existe muito preconceito com literatura comercial, que a gente também pode chamar de literatura de gênero. Em contraste, temos a Literatura com L maiúsculo, como as pessoas dizem, que é aquela literatura que não gosta e não quer ser classificada com rótulos como “isso é uma comédia”, “isso é uma fantasia”. É uma literatura que tem uma preocupação de ser original a ponto de não poder ser classificada; que está, muitas vezes, mais preocupada com testar os limites da linguagem, da expressividade estilística da língua portuguesa.
A literatura de gênero está mais preocupada em contar um certo tipo de história. Gênero nada mais é do que uma classificação que cria certas expectativas sobre a experiência de leitura. Por isso que a gente fala que gêneros têm convenções. Por exemplo, quais são as convenções de um lápis? Lápis tem que ter grafite. Lápis é feito de madeira. Lápis é usado para escrever, então você tem que poder segurar. Qual é o mínimo necessário na forma e no conteúdo de um lápis para que ele seja considerado um lápis? Até que ponto eu posso tirar detalhes desse objeto e, mesmo assim, ele continuar sendo um lápis? A mesma ideia se aplica à gêneros literários. Que forma e conteúdo uma história precisa ter para que ela seja considerada parte de um determinado gênero?
No Brasil, me parece que existe muito preconceito com escritores que querem escrever gênero porque existe a ideia de quem eles seguem uma receita e, por isso, existe a percepção de que são narrativas fáceis, repetitivas, menores, não-artísticas.
Além disso, o mercado literário brasileiro é relativamente pequeno, menos pessoas leem no Brasil do que, por exemplo, nos Estados Unidos. Isso também nos limita. O livro é um produto que vai ser oferecido no mercado e a editora quer um retorno no investimento dela. Esse risco de fracasso gera o raciocínio “O escritor brasileiro desconhecido não sei se vai fazer sucesso, então vou pegar o estrangeiro que já fez sucesso no exterior e vou traduzir”.
Além disso, tem a questão da cultura de oficinas de criação e cursos de escrita. Nos Estados Unidos, essa é uma cultura muito estabelecida, muito mais antiga. No Brasil, é um fenômeno relativamente recente.
Diego: Eu acho que as duas literaturas têm muito valor. A gente procura por elas em momentos diferentes. Por mais que você costume ir aos melhores restaurantes e tenha o paladar mais aguçado do mundo, tem dias que você quer só quer comer uma pizza. Nem sempre vou ter vontade de ler uma literatura que é mais profunda, que vai me fazer questionar a vida até o último átomo, com uma linguagem que exige que eu leia o texto várias vezes para poder entender e absorver a profundidade do que o escritor está expressando. Às vezes, eu quero simplesmente ler uma história que me conte algo interessante, que me emocione, que me faça rir, que me intrigue, que crie mistério e me deixe curioso para saber o que vai acontecer na sequência. Eu não vejo um tipo de literatura como melhor ou pior, superior ou inferior. Eu vejo como experiências de leitura diferentes. Então, eu diria que a Literatura “com L maiúsculo” é sim mais sofisticada que a literatura de gênero, mas essa sofisticação não se traduz, necessariamente, em um texto mais prazeiroso de ler. Talvez a grande diferença é que a Literatura “com L maiúsculo” quer provocar o leitor intelectualmente e a literatura de gênero quer envolver nossas emoções.
Vejo muita gente dizendo que tem vergonha de admitir que gosta do livro tal, que foi bestseller. “Mas eu quero ser escritor, como vou dizer que gostei do bestseller tal?” É uma vergonha por ter se deixado envolver por uma história, como se isso diminuísse você, tornasse você menos inteligente. Os leitores e escritores esnobes dizem “Se você gostou disso ou daquilo, se essa porcaria te envolveu é porque você não tem essa complexidade emocional que nós aqui em cima, no alto pedestal reservado para os amantes da Literatura, temos”. Sempre me incomodou isso. E eu não tenho a menor vontade de fazer parte desses círculos literários presunçosos e arrogantes.
Esse preconceito é comum de ambos os lados. Em um extremo, temos os escritores que dizem “Literatura de gênero é superficial”. No outro extremo, temos os escritores que dizem “Literatura com L maiúsculo é pedante.” Esses rótulos só servem para você se sentir melhor, se sentir mais inteligente ou profundo ou complexo… Me dá uma preguiça isso tudo. No final, para mim, o importante é o seguinte: me conta uma história de uma forma que mexa comigo, escreve uma narrativa que me acrescenta alguma coisa, que faça bom uso do meu tempo, e você pode classificar o texto como quiser.
Diego: A gente não tem no Brasil, ou não tinha até pouco tempo atrás, essa tradição de olhar para o escritor como um artesão das palavras. A gente não entendia que não basta jogar ideias e pensamentos na página e dizer “Meu texto é o que é. Se você não entende é porque você não tá interpretando da forma correta ou você não tem sensibilidade ou inteligência para entender”.
Se você quer se tornar um músico profissional, você pratica feito louco, procura um mentor, faz cursos… Mas para se tornar escritor, não existia essa mesma cultura do estudo, da prática, de olhar para a escrita como um ofício a ser aprendido e aperfeiçoado. As pessoas querem escrever um livro e querem ser publicadas na sua primeira tentativa de escrever uma história e ficam frustradas quando não conseguem.
Por falta de compreensão e conhecimento dos conceitos mais básicos, acabam escrevendo textos que não vão a lugar nenhum, que são confusos e superficiais ou, às vezes, são tão profundos que parecem mais um exercício filosófico do que uma história de ficção. É por isso que eu gosto de diferenciar, no Ficção em Tópicos, histórias de ficção e narrativas de ficção. Você pode escrever uma narrativa de ficção sem contar uma história. Existem pessoas que leem alguns artigos do site e me escrevem dizendo “eu li o livro tal que não usa tal conceito que você mencionou” e eu respondo “bom, pelo que você tá me contando, nem parece uma história, parece mais uma narrativa de ficção”.
Muitos textos literários não contam história. São mais biografias de personagens ou estudos de cenário ou ensaios sobre uma certa temática. A intenção do escritor não é contar uma história no sentido clássico de “aconteceu tal evento inesperado no contexto da vida deste personagem e ele reagiu dessa forma”. O foco do Ficção em Tópicos é, justamente, ajudar escritores a produzir narrativas que contam histórias.
Muitos escritores não querem estudar técnica porque acreditam que técnica é o mesmo que fórmula e, por isso, acabam escrevendo livros que não têm a mesma qualidade estilística e dramática que os livros traduzidos de outras línguas.
O grande problema é a cultura do escritor brasileiro iniciante do “Se eu preciso estudar e me esforçar para escrever melhor é porque não tenho talento. Ou escrevo bem ou não escrevo.” Os cursos simplesmente oferecem ferramentas para lapidar e desenvolver suas habilidades e ajudar você a expressar suas ideias com mais clareza e intensidade.
Diego: Um fenômeno muito interessante que eu observo em muitos escritores com quem trabalho é o seguinte: o mercado brasileiro vende muitas traduções de livros em inglês, em especial em literatura de gênero, e esses livros acabam se tornando referência de qualidade para muita gente. O problema de muitas traduções é que elas traduzem palavra por palavra, ao invés de traduzir a intenção do escritor, mesmo que isso signifique mudar significativamente o texto.
Ficcionados: Não é uma adaptação, né?
Diego: Sim, exatamente. O que em inglês soa informal e natural, quando você traduz para o português palavra por palavra, soa muito esquisito, muito formal, em especial em diálogos. Mas o escritor que gosta de ler traduções pensa: “Esse livro foi bestseller, então vou tentar escrever desse jeito”.
Então você acaba com uma geração de escritores sendo formada com essa ideia de que essas traduções são referências de estilo porque foram publicadas, porque foram sucesso. E daí que vem o grande valor de você ler o escritor brasileiro, que usa a nossa língua, as nossas gírias, o nosso jeito de falar e tudo mais que a nossa cultura tem para oferecer em termos de expressividade. Daí vem meu interesse em equipar escritores brasileiros com essas ferramentas narrativas, para que eles possam produzir histórias com o mesmo nível de qualidade que a gente reconhece em histórias que vem de fora, mas na nossa língua e do nosso jeito.
Escritores brasileiros, por favor, parem de escrever histórias que se passam em Londres, em Nova Iorque, em Paris… Gente, não existe um cenário mais fantástico para você situar uma história de qualquer gênero do que o Brasil. A nossa cultura é tão rica em tantos aspectos.
Eu trabalhei esses tempos com uma escritora em uma consultoria e ela estava na dúvida sobre onde situar a história. A dúvida dela não era nem se situava no Brasil ou no exterior, era “Situo na cidade pequena onde eu moro ou situo numa cidade maior, numa grande metrópole, numa São Paulo ou Rio de Janeiro?”. Conversamos muito sobre isso e eu incentivei ela a escrever sobre a cidade dela, a cidade onde ela mora desde que nasceu e sobre a qual ela conhece detalhes e particularidades que têm o potencial de enriquecer muito a história.
Se você tem conhecimento suficiente para escrever sobre outras cidades e culturas, vai adiante — não que você precise de autorização para poder escrever a respeito de qualquer coisa. Se quiser escrever sobre Tóquio e você nunca foi a Tóquio, não tem problema. Você está absolutamente autorizado a escrever sobre qualquer coisa.
Mas eu acredito que quando você escreve com conhecimento de causa, você cria de um lugar muito mais verdadeiro, você cria a partir de uma fonte muito mais rica para encontrar ideias originais. Eu gostaria muito de ler ficção científica que se passa em Porto Alegre, fantasia que se passa numa Belo Horizonte pós-apocalíptica, um romance policial que se passa em Salvador. As particularidades dessas cidades e das culturas locais têm muito a oferecer ao escritor.
Diego: Eu não acho que a gente tenha que tentar se igualar à literatura estrangeira. A gente não tem que tentar fazer igual. A gente tem que tentar fazer a nossa literatura, do nosso jeito. Num cenário ideal, eu não enxergo uma livraria brasileira com mais escritores nacionais do que estrangeiros, mas que basicamente você encontra histórias semelhantes às traduzidas de outras línguas. O que eu gostaria de ver é uma literatura que vai repensar a fantasia, repensar a ficção científica, repensar todos os gêneros de uma forma unicamente brasileira.
Mas para que isso aconteça, a gente precisa aprender a olhar para nós mesmos com certo distanciamento, procurando entender onde o específico da nossa cultura se cruza com o universal da experiência humana. Acho que esse é o grande trunfo da indústria cultural americana. Vem daí nossa obsessão por livros americanos, séries americanas, filmes americanos. Eles conseguem transformar o local em universal. Eles têm uma visão muito clara do que são os Estados Unidos, do que é ser americano, e quais são as crenças e valores da América ideal.
Quais são os nossos valores como brasileiros? O que é que torna a gente brasileiro? Como seria o brasileiro ideal? Como seria o Brasil ideal?
Diego: Projetos eu tenho um zilhão e eles estão todos em andamento ao mesmo tempo. Estou trabalhando em um livro, mas ainda estou no início do processo de criação. Também estou trabalhando com uma escritora amiga minha em um projeto que é de troca de cenários: cada um escreve um textinho sobre um cenário e entrega para o outro. Daí nós escrevemos contos ambientados no cenário recebido. Já escrevi três textos e gostei do resultado. O mais bacana dessa troca é que ela diminui a ansiedade de criar, de olhar para a página completamente em branco e não saber por onde começar. Ter o cenário definido já dá para você um universo de ficção. Basta você entrar e explorar esse lugar, procurando por personagens e por uma história para contar.
Em termos de cursos, estou desenvolvendo um que se chama Arquiteto de Histórias, que propõe o uso de técnicas como ferramentas para explorar diferentes perspectivas sobre uma ideia de história antes de começar a escrever. O objetivo do curso é preparar o escritor para mergulhar fundo em seu universo de ficção, encontrar os pilares que servirão de base para o desenvolvimento da história e escrever um resumo que dê uma visão macro da narrativa, do início ao fim. É uma abordagem diferente do curso Jardineiro de Ideias, que convida o escritor a começar a escrever inspirado por uma ideia incompleta, permitindo que a história se desenvolva espontaneamente, a medida em que se escreve.
Estou desenvolvendo vários projetos ao mesmo tempo e, por isso, vou progredindo devagar. Não sou aquele tipo de pessoa que pensa “agora estou escrevendo esse livro, então vou terminar e daí eu começo outro projeto”. Eu vou alternando entre uma coisa e outra. Acontece seguido de eu estar lendo e comentando os textos de outros escritores e identificar pontos similares que não funcionam em um texto que escrevi. Daí eu já vou lá e modifico minha história. Um trabalho está sempre complementando o outro. É um processo meio caótico, mas que eu acredito que enriquece tanto meu trabalho como escritor quanto meu trabalho como instrutor e mentor de outros escritores.
Obrigado, Diego, pela atenção e pela profundidade das respostas!
E você, ficcionado, se quiser saber mais sobre o trabalho do Diego, acesse o Ficção em Tópicos.